9 | Os tempos mudaram: agora são as mulheres empoderadas que apedrejam putas
Uma versão mais longa e bem escrita da minha crítica à putofobia contra a vitória de Mikey Madison no Oscar.
Poucos minutos depois da vitória de Anora eu comecei a ver muita putafobia na internet, não quis brigar, fiquei na minha e fui dormir.
Ontem voltei a ver muitas críticas de que Anora era um filme raso. Com quem eu considero, converso; com quem não deixo quieto. Entendo também que tem mais a com um sentimento de perda do que qualquer outra coisa.
Vejo o vídeo de PH Santos sobre a importância de um filme independente ter ganhado o Oscar e o primeiro comentário é algo como “você não acha problemático vencer um filme que hiperssexualiza a mulher?”
Coitado. Acha que as mulheres recatadas não são também fruto de opressão patriarcal. Que a “mulher empoderada” sem consciência de classe e gênero não é mero produto capitalista.
Aí me deparo com o texto de Milly Lacombe para a UOL. Me pergunto se a falta de vontade de entender o filme é só falta de boa vontade ou está relacionada a putofobia.
No texto ela diz que o filme é sobre uma prostituta buscando um principe encantando e descobrindo depois que o homem certo era um brutamontes.
A única coisa certa nesse paragrafo é a profissão da protagonista, mas elas preferem ser chamadas de Trabalhadoras do Sexo.
Anora é um filme sobre a falência das ilusões do capitalismo e, com elas, ideais de classe e gênero. A protagonista não perde um principe, ela descobre que a ascensão social via uma relação romantica pertence aos filmes e não a realidade. Quando ela encontra um “bom homem” ele não é um brutamontes, é um homem de classe baixa, que é obrigado a fazer trabalho braçal, mas que não esconde que vive e gosta de sua avó.
Na sequência Lacombe reclama da romantização do precário e de o filme não mostrar os problemas do trabalho sexual. Estamos falando de “Uma linda mulher"?
Não estamos. Qualquer leitura rápida de Silvia Federici ou de Monique Prada nos alerta sobre como tratar as trabalhadoras sexuais exclusivamente pelo viés da marginalidade serve aos interesses do patriarcado de criar a ameaça da mulher vagabunda, assim a gente pode escolher ser uma dona de casa não remunerada por medo.
“A divisão das mulheres entre boas e más beneficia a estabilidade do sistema. O estigma da prostituição nada tem a ver com o que as trabalhadoras sexuais são ou fazem. O modelo de esposa e mãe abnegada exige muito sacrifício. Ainda que se diga que a mulher é a rainha do lar, sabemos que não é, que é uma pessoa a serviço de todo mundo. É um modelo tão pouco atraente e com tão pouca recompensa e reconhecimento que a única forma de conseguir que as mulheres se adéquem a ele é assegurar a elas que a outra possibilidade é pior."
Dolores Juliano, antropóloga argentina
A isso se segue uma sequência de fatos da premiação com comentários brevíssimos e genéricos sobre política internacional. Parece que que o texto foi escrito na pressa de ir logo pro bloco.
Considero a interpretação de Mikey, Demi e Fernanda muito boas. Torci e acredito que Fernanda deveria ter ganhado, mas entendo também os motivos de Mikey ter levado e não Demi.
Pra começar Mikey não divide o protagonismo como Demi e tem 100% de tempo de tela. Depois a escolha de Sean Baker de fazer um filme com três atos de gêneros cinematográficos diferentes exige de Mikei uma flexibilidade que os outros dois roteiros não fazem. Esse é um caminho de compreensão.
Existem prêmios roubados, existem prêmios perdidos. Quando você escreve pra um grande veículo, eu acho importante saber a diferença entre um e outro. E é preciso lembrar: nós sequer perdemos!
O FUTURO REPETINDO O PASSADO
Depois de postar esse texto nos stories do insta, boas conversas rolaram.
Minha amiga Ana Barros lembrou que Demi Moore foi colocada de lado pela industria após seu papel de “Striptease”.
Eu nunca vi o filme e sinceramente nem a escrita desse extra me animou muito a fazer isso, mas não é preciso assistir pra saber o motivo pelo qual a atriz foi vista como uma profissional “não séria o suficiente” pra outros papeis.
Dali em diante, Demi pairou como uma subcelebridade que ganhava as manchetes apenas quando namorava um bonitão mais novo como Ashton Kutcher.
O que será que Demi diria se disséssemos: vamos ali jogar pedra nessa novinha que interpretou uma prostituta?
A resposta eu deixo com vocês.
A VITÓRIA DE MIKEY PROVA QUE SUBSTÂNCIA ESTAVA CERTA
Alguém disse que era preciso provar que a industria cinematográfica descarta mulheres quando envelhecem? Porque eu sequer vi isso ser colocado pra debate.
Esse é um dos argumentos mais moralistas (e menos criativos) que eu vi sendo usado para atacar Mikey Madison.
É a atualização do “ela foi promovida porque dá pro chefe”. Vocês enxergam?
É a retirada dos méritos de uma mulher aliada mais uma vez à imposição moral de ser domesticada, de se comportar bem.
É a putafobia que foi normalizada quando mulheres começaram a trabalhar em escritórios e era preciso explicar o porquê de elas estarem sendo promovidas em detrimento de homens que estavam lá há tanto mais tempo. Não poderia ser mérito delas, claro.
DIA INTERNACIONAL DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES DO SEXO
Esse dia é comemorado um dia depois de o Prêmio ter sido dado, 3 de março.
Passamos esse dia pedindo pra um francês aproveitador falar sobre a comunidade trans que ele porcamente retratou em Emilia Perez como se ele tivesse algo a dizer. E aqui ficou claro que ele não tinha.
Enquanto isso, Mikey Madison e Sean Baker subiram ao palco da maior premiação do cinema mundial em termos de público e disseram “eu agradeço às trabalhadoras sexuais, estou com vocês”. E ninguém falou sobre isso.
Eu sei que defender a organização de trabalhadoras sexuais ou a legalização da profissão é um assunto espinhoso mesmo na esquerda e a gente vêm perdendo a capacidade de estar a frente realmente das pautas enquanto campo político.
Mas queria fazer um pedido: que demos atenção à isso. Abaixo deixo sugestões de leitura pra falarmos do assunto com menos moralismo e mais conhecimento. Indico inclusive 3 livros escritos por mulheres da industria do sexo.



Putafeminista, de Monique Prada
Nos dá uma perspectiva nacional do Trabalho Sexual no Brasil, sua história e legislação, assim como comenta o contexto social que recebe esse tipo de trabalhadora na sociedade. Gosto especialmente de como ela mostra a importância dessa classe na construção de políticas de conscientização contra infecções sexualmente transmissíveis junto ao Ministério da saúde. Falei sobre a leitura aqui.
Teoria King Kong, de Virginie Despentes
A autora francesa parte de sua experiência sexual e da atuação na industria pornô para debater certas certezas mobilizadas pela sociedade e até por feministas e que são puro suco de moralismo. Falei desse livro aqui, mas… fica a ressalva de que esse foi meu primeiro livro sobre o assunto, assistindo hoje sinto em mim um moralismo que foi se dissipando, não concordo com a Bárbara de ontem, muito menos com a de 4 anos atrás. É o famoso só muda de ideia quem as tem.
Dando uma de puta: a luta de classe das profissionais do sexo, de Melissa Gira Grant
Esse é o livro mais completo em termos de teoria geral, ele perpassa as diferentes legislações sobre o trabalho sexual no mundo e debate a importância de modelos acolhedores para que as Trabalhadoras do Sexo não sejam responsabilizadas pelas violências a que são submetidas. Falei dele aqui.
Segue uma foto minha pra vocês lembrarem da minha cara, afinal… faz dois anos que não escrevo por aqui e ainda assim tenho ganhado alguns seguidores. Foi por causa dessas pessoas que, quando começaram a me pedir pra salvar esse texto em algum lugar fora dos stories me lembrei do Substack. Não sei se esse é um retorno, mas achei gostoso poder escrever tanto e talvez retorne a esse espaço quando sentir necessidade. Se alguém ainda está lendo, me diz nos comentários?
Todos os textos sublinhados tem links! Tentei trazer as fontes de tudo o que apresentei pra vocês, nos livros você pode clicar pra comprar direto das editoras, todas independentes assim como o filme Anora. Sejam marginais, sejam sensatos, se não assistiram ainda o filme, essa é a hora.
finalmente vejo um texto dizendo isso! fico abismado com o que as pessoas falaram de anora, como se uma prostituta não fosse digna de ter sua história contada. um dos melhores textos que li ultimamente 🥰
Demais, Ba! Gostei muito do filme e da atuação da Mikey.
O que achei muito interessante da experiência de assistir Anora no cinema foi que, até por esse passeio de gêneros, observar a reação do público é um termômetro de como a sociedade recebe as agressões à ela durante o filme.
É muito fácil nos acostumarmos e rirmos com os absurdos quando eles são retratados de forma cômica ( o que ao meu ver é totalmente intencional na elaboração do filme). Ao decorrer do filme você cai na fixa do pós-trauma da personagem e se dá conta de que ela passou por abusos físicos (ela é sequestrada inclusive) e psicológicos. Ela é totalmente desumanizada.