11 | A cegueira do feminismo liberal e a série Adolescência da Netflix
Afinal de contas: quem pode fazer a auto-crítica do movimento?
Quem se lembra das vésperas da eleição de 2018, quando Mano Brown subiu ao palco do último evento de campanha de Haddad e criticou a esquerda por ter se afastado da base? Ainda que eu tenha discordâncias sobre a hora e o lugar de lavar roupa suja, ele não estava errado.
O problema foi que virou moda fazer auto-crítica depois dali. Mas só da esquerda, dos movimentos sociais e por igualdade de direitos.
Após devorar os quatro episódios de Adolescência da Netflix (é tudo isso mesmo que estão dizendo) me deparei com a coluna de Mariliz Pereira Jorge na Folha de S.Paulo. A autoproclamado feminista diz que o “feminismo errou” já no título ao “excluir os homens” do debate de gênero. Pra qualificar o movimento ela usa palavras como “raiva”, “ódio” e “vingança”.
Acontece que na mini-série temos um garoto de 13 anos que assassinou uma colega de escola porque ela o apontava como um incel. A complexidade desse caso é dada pela idade do garoto, o debate precisa ser sofisticado pra entendermos enquanto sociedade tudo o que está por trás da machosfera da internet e as consequências na vida real.
Mas a jornalista apresenta uma resposta simples pra um problema complexo: o erro é das feministas que, raivosas e vingativas, não deixaram que os homens fizessem parte do movimento.
Eu participo de debates e ações ligadas à gênero na cultura e na política e os únicos momentos em que os espaços eram exclusivos para mulheres era quando fazíamos espaços de acolhimento e troca sobre violência. Os homens nunca foram excluídos do debate de gênero pelas feministas, eles só não serão protagonistas de mais esse espaço.
E a verdade é que essa é a dificuldade de uma parcela grande deles: ouvir, abaixar a guarda, refletir, mas muitos deles o fazem e fazem muito bem, servindo de apoio às mulheres e de ponte para que novos homens se aproximem. Outros vão além e fazem documentários sobre masculinidades ou grupos pra debater o assunto, escrevem livros, se organizam para garantir direitos das diferentes paternidades.
Na sequência temos um bom pedaço do texto que fala sobre importância da inclusão de homens para a vitória do movimento, sem citar nenhuma teórica que o tenha feito antes dela. Simone de Beavouir fala disso, Audre Lorde fala disso, bell hooks fala disso e tantas outras também.



É claro, não se trata de um texto acadêmico pra ter todas as referências bibliográficas, mas ela achou tempo e caracteres para citar Tati Bernardi. Ou ela acha Tati uma pensadora melhor que todas essas citadas, ou não as leu.
E aí é fácil fazer a auto-crítica, sem ler, sem construir, sem se colocar como objeto da crítica (me pergunto se algum dia teremos uma coluna da jornalista fazendo auto-crítica sobre ter defendido o direito de Danilo Gentili chamar Maria do Rosário de puta. Ou sobre ter feito uma coluna perguntando “qual o problema de sermos objetificadas?”)
Se na coluna sobre Adolescência ela fala do movimento feminista como se ele tivesse força social para excluir de fato os homens de algo, no texto sobre objetificação ela também é incapaz de perceber a diferença entre ser sexualmente desejada e ser objetificada, mais uma vez ignorando a presença de uma super-estrutura misógina na nossa sociedade.
O feminismo não está errado e o problema do feminismo não é Mariliz Pereira Jorge. O problema do feminismo é que ele seja tão liberal e ignore completamente a estrutura da nossa sociedade em qualquer debate sobre o assunto.
O feminismo liberal não fez nada pelas mulheres até aqui e não vai nos levar à lugar nenhum. Foram as mulheres negras, as comunistas, as periféricas e aquelas que se dispuseram a confrontar a estrutura que nos oprime que fizeram.
O feminismo liberal escreve colunas na Folha de S.Paulo com títulos chocantes pra agradar machos e anti-feministas. São as feministas liberais que usam conceitos aprendidos de orelhada como lugar de fala pra dizer que homens não devem falar ou participar de certos espaços, que usam o terrível argumento do “sem útero, sem opinião” ao falar de questões distintas das reprodutivas e operam na chave da transfobia. Apesar de maioria numérica, não são as feministas liberais que constroem o movimento.
Ao fim e ao cabo Mariliz Pereira Jorge acerta na trave: ela só não entendeu ainda que existem Feminismos, e o único que “exclui" homens e aponta o dedo pras vítimas é o liberal.
Esse espaço não nasceu para dar respostas a outras mulheres da mídia, apesar de ser a segunda vez que eu faço isso em três textos, mas esse episódio em específico me fez refletir. Não é sobre competição feminina, não é sobre menosprezar outras mulheres e seus acúmulos, mas é preciso expor a falácia do feminismo liberal e isso inclui responder suas porta-vozes.
Se disséssemos que o movimento negro tem que ouvir os brancos (Maria Rita Kehl tentou) ou que os héteros deveriam ser mais ouvidos no movimento LGBTIA+, diriam que isso é loucura.
E aqui eu cito Carolline Sardá em sua live sobre o assunto: porque só o movimento feminista tem a obrigação de maternar seus opressores?
Vivemos anos de opressão machista e isso fez de nós (além dos traumas e cicatrizes) organizadas e muito didáticas na reivindicação por igualdade. Em poucos anos de avanço (pouco e lento) do feminismo, uma parcela dos homens se tornou mais agressivo, cometendo difamações, ataques e assassinatos.
Nessa leitura de que o feminismo é o culpado há um erro também histórico: parece que o machismo e o feminismo sempre existiram. Como se a luta por igualdade não fosse uma resposta à opressão. Como se não tivéssemos o direito de ter raiva.
Gosto daquela frase apócrifa que diz: se as mulheres quisessem vingança teriam todo o direito, mas nós só queremos igualdade.
Gosto mais ainda daquela frase de Malcolm X: não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor.
Esse papelzinho de domesticação e docilização do oprimido só serve aos que o oprimem.
Meu plano é que a próxima newsletter fale sobre o que eu realmente acho que devemos analisar e debater sobre essa obra, coisa que fez por exemplo Vera Iaconelli em outra coluna da Folha.
Para não perder o costume, deixo aqui algumas dicas de reflexão sobre masculinidade:
Seja homem, de JJ Bola (Editora Dublinense)
Homem negro e imigrante congolês na França, JJ Bola fala da sua experiência enquanto homem a partir de referências ancestrais de África, pensadoras feministas e uma didática freiriana. Ao longo do livro ele questiona esteriótipos e reivindica outro lugar pras masculinidade. Falei desse livro em vídeo.
The mask you live in, documentário disponível no Youtube
Faz alguns anos que eu assisti a esse documentário, talvez seja o primeiro produto que eu tenha visto que debata a questão de gênero pela masculinidade.
Masculinidades negras: do rompimento aos afetos, de Ismael dos Anjos
Nessa matéria o jornalista fala sobre as especificidades que as masculinidades trazem para o tabuleiro quando falamos de relações interpessoais. Ainda que tenha sido publicada há 5 anos, pouco mudou na estrutura da nossa sociedade no que tange a racialidade, mantendo a matéria infelizmente atual.
AGENDA EM SP
DOMINGO, 30
Abro os trabalhos do ciclo de lançamentos da Oficina Raquel em São Paulo, fazendo a apresentação de uma aula de Luiz Antônio Simas sobre cordel na Casa Sincopada. A entrada é gratuita e haverá exemplares para venda e autografo após a aula.
Serviço:
🗓️ Domingo, 30 de março
⏰ 14h
📍Casa Sincopada
Rua Treze de Maio, 586 - Bixiga - São Paulo
🚌 Próximo ao metrô Brigadeiro (1,3km)
E seria impossível fechar essa newsletter sem nenhuma menção ao fato de Bolsonaro ter se tornado réu no STF essa semana, o poema acima está em “Brasil: uma trégua” de Regina Azevedo, brindemos 🥂
Mariliz é o tipo de pessoa que só tem espaço em jornal até hoje porque os homens deixam, por isso essa defesa toda pra eles. É de foder.
Você, como sempre, arrasa ❤️
E devemos pensar também que o homens no geral querem escutar outros homens e não mulheres